O Conceito de Crime




Caros leitores,
O intuito deste texto não é esmiuçar o estudo do crime nos seus mais diversos desdobramentos, mas somente apresentar um conceito prático e sucinto do que o crime é e como é abarcado pelo Direito.

1. INTRODUÇÃO

A vida em sociedade pressupõe muitas situações que tendem à dissensão, à divergência. Quaisquer relações humanas, por mais singelas que sejam, sempre, em algum momento, gerarão vicissitudes que causarão fatos reprováveis na conduta das pessoas. Seja um desentendimento moral, como a ofensa verbal, ou uma ação altamente inaceitável, como o cometimento de um homicídio, a sociedade sempre estará fadada à presença de acontecimentos destrutivos e insalubres.
O crime é, sem dúvida, o fato social mais reprovável e reprovado dentro do contexto da sociedade. O cometimento de um crime (conceito que logo mais será destrinchado) é algo de extrema relevância para as pessoas, e fere em muito os bens mais importantes da vida. A previsão para punição de delitos cometidos no seio da sociedade é, talvez, quase tão antiga quanto a história da própria sociedade. Exemplos:
  • As tábuas da lei de Ur- Nammu (datadas de aproximadamente 2111 a.C a 2090 a.C.), em seus §§ 19 a 22, que já previam a possibilidade de ressarcimento financeiro em decorrência de lesão corporal;
  • A Lei de Moisés, biblicamente registrada, que já disciplinava a possibilidade do homicídio doloso e culposo (“deverá ser morto todo aquele que ferir uma pessoa de modo que ela morrer. Porém, se foi apenas um acidente, não tendo havendo a intenção de matar, então aquele que matou deverá fugir para um lugar que Eu [O SENHOR] escolherei e ali ele ficará livre” – Êxodo 21:12 e 13) e ainda a possibilidade da reparação do dano, aliada à equidade (“se alguns homens estiverem brigando e ferirem uma mulher grávida, e por causa disso ela perder a criança, mas sem prejuízo maior para a sua saúde, aquele que a feriu deverá pagar o que o marido dela exigir, de acordo com o que os juízes decidires – Êxodo 21:22).
  • O Código de Hammurabi, talvez o mais famoso conjunto de leis da antiguidade, que trazia consigo a chamada pena – ou lei – de talião, na qual se vislumbra a máxima “olho por olho, dente por dente”, e trazia ainda orientações acerca dos roubos, estupros, receptações, falso testemunho, entre outros.
Assim sendo, entende-se que a repulsa ao crime e às suas conseqüências é uma percepção antiga do homem e remonta a história já das civilizações mais antigas.

2. O CRIME E O DIREITO PENAL

O Direito Penal (ou Direito Criminal, como é conhecido em alguns países) reveste-se de alguns princípios quando de sua aplicação e que se fazem muito importantes no estudo do conceito de crime. Incumbe lembrar, na seara do “conceito do crime”, tais princípios:
  • Princípio da Intervenção Mínima: reflete a idéia de que o Direito Penal deve interferir somente nos casos de ofensa aos direitos mais importantes. É a chamada ultima ratio (ou medida mais agressiva). Isso significa que, caso o fato seja passível de outras sanções ou medidas de outros ramos do direito, estas devem ser aplicadas e não o Direito Penal. Assim sendo, conforme leciona Greco1, se alguém emitir um cheque sem fundo, caso haja a possibilidade de se obrigar o emitente a pagar a quantia devida, além de bani-lo da praça por um longo prazo, não se faz necessária a atuação do Direito Penal, pois tal conduta ofensiva pode ser solucionada com outras sanções e meios que não os previstos na Lei Penal. Este princípio orienta, ainda, que a análise de quais bens da vida são os mais importantes deve ser constantemente refeita pelo legislador, uma vez que a sociedade evolui perenemente, e o mutatis mutandis legislativo deve acompanhar e ser balizado de acordo com tais mudanças e evoluções sociais.
  • Princípio da Lesividade: como conseqüência do princípio da intervenção mínima, (já citado) tal princípio disciplina que, uma vez eleitos os bens mais importantes a serem protegidos pelo Direito Penal, a punição só pode se dar a uma ofensa real e efetiva a eles. Equivale a dizer que deve haver uma ação grandiosamente reprovável por parte do agente para que haja a incidência do Direito Penal. Assim sendo, por exemplo, não se podem punir os atos reprováveis que afetem somente o próprio agente (tentativa de suicídio, por exemplo) ou aqueles atos que, embora divirjam da moral e da normalidade, não possuem previsão legal de punição (atos libidinosos exagerados, por exemplo).
  • Princípio da fragmetariedade: a fragmentariedade é conseqüência dos dois princípios acima trabalhados. Significa que mais uma vez que o Direito Penal só vai proteger aqueles atos que atentarem contra os bens jurídicos mais importantes, devidamente elencados e previstos nas normais penais. Assim sendo, cabe dizer que o Direito Penal possui caráter fragmentário, ou seja, abrange e trata apenas de uma pequena parcela dos atos ofensivos que atentem contra os bens jurídicos mais importantes, tudo isso previsto em lei penal.
E o que isso tudo tem a ver com crime? Após a munição de conhecimento acerca de alguns dos princípios que regem o Direito Penal, passa-se à análise do conceito de crime em si.

3. CONCEITO DE CRIME

O Código Penal brasileiro não define em nenhum artigo o que vem a ser crime. As antigas legislações criminalistas davam definições vagas, conforme a seguir mostrado:
  • “Julgar-se-á crime ou delicto: §1º Toda acção ou omissão voluntária contraria ás leis penaes” (art. 2º, §1º do Código Criminal do Império, de 1830).
  • “A violação da lei penal consiste em acção ou omissão; constitue crime ou contravenção” (art. 2º do Código Penal de 1980).
O atual Código Penal brasileiro, de 1940, por sua vez, não aludiu a nenhum conceito taxativo de crime. Por isso, faz-se necessário recorrer à doutrina para tê-lo.
Antes de mais nada – e como em quase toda discussão acadêmica jurídica -, é necessário saber que a doutrina é dividida quanto ao conceito exato do crime, por isso abordar-se-ão as duas correntes mais fortes.

3.1 Teoria Tripartida

Os autores adeptos da teoria tripartida – ressaltando a eminência de nomes como Luiz Regis Prado, Eugenio Raúl Zaffaroni, Francisco de Assis Toledo, Rogério Greco, entre muitos outros – entendem que o crime é um fato típico, antijurídico e culpável. Este autor, nos átrios da sua humilde opinião, também concorda com esta plêiade de estudiosos.
Por fato típico se entende todo e qualquer fato que está previsto num tipo penal, ou, em outras palavras, numa NORMA PENAL. Assim sendo, por força constitucional (art. 5º, XXXIX) e infraconstitucional (art. 1º do Código Penal), só haverá crime se houver previsão legal da conduta do agente como delituosa.
O fato típico possui os seguintes elementos: conduta (ação ou omissão), o resultado, o nexo de causalidade e a tipicidade. Obviamente não interessa, neste texto, aprofundar o estudo sobre cada um deles (o que, com certeza, daria mais alguns Kilobytes de texto), mas apenas traçar uma visão geral e ampla sobre o tema.
O fato antijurídico, por sua vez, é aquele que contraria as normas legais e não é manifestamente declarado lícito. Assim, a antijuridicidade é a contrariedade, o antagonismo, a prática que vai de encontro à previsão legislativa. Se o agente não praticar a conduta revestido de uma das situações do art. 23 do Código Penal (excludentes de ilicitude, a saber: legitima defesa, estado de necessidade ou estrito cumprimento do dever legal), ou a lei não declarar expressamente que a conduta é lícita, o agente incorrerá em um fato antijurídico.
Já o fato culpável é aquele sobre o qual incide, logicamente, a culpabilidade. A culpabilidade é o juízo de reprovação, de repudia, de não aceitação da conduta do agente. Todo fato culpável é um fato patológico, que prejudica a sociedade, que em si mesmo traz conseqüências graves e, às vezes, irreversíveis para a(s) vítima(s), para o Estado e para a coletividade. Por isso a reprovação social e a previsão legislativa de punição para determinadas condutas.
Assim sendo, para a teoria tripartida, o crime é a junção dos três elementos em um único acontecimento: a tipicidade (previsão legislativa para o fato), a antijuridicidade (a ofensa aos preceitos legislativos e, de modo geral, à moral e à vida em sociedade) e a culpabilidade (o juízo de reprovação imputado ao fato).
É importante ressaltar-se o seguinte:
  1. Quanto à antijuridicidade, Karl Binding afirma que esta não é nada mais do que o encaixe da conduta à previsão legal. Para ele, o agente criminoso ao praticar determinado ato, não estaria contrariando a lei, mas sim se amoldando a ela. Tome-se como exemplo o artigo 121 do Código Penal, que prevê o homicídio e que traz em seu texto capitular a expressão “matar alguém”. Assim, uma pessoa que comete homicídio – mata alguém - está, na verdade, se encaixando àquela norma. Desse modo, então, onde ficaria a antijuridicidade? Segundo aduz parte respeitável da doutrina, encabeçada pelo mestre Luís Regis Prado, quando se fala em antijuridicidade, tem de ser feita a separação entre os conceitos analíticos de Lei e Norma Jurídica: a Norma Jurídica é a esteira lógica da lei, que, ao prever determinado comportamento, na verdade está prevendo a sua PROIBIÇÃO, ou seja, onde se lê “matar alguém”, se entende tacitamente “não mate alguém”; já a Lei, por sua vez, é a representação formalizada da Norma Jurídica, o que justifica todo este raciocínio, pois, gramaticalmente falando, se a lei contivesse proibições, seria muito mais estranho lê-la e interpretá-la, aplicando-a aos casos concretos.
  2. Todo o conceito de crime aqui apresentado sempre deve ser analisado à sombra do princípio da proporcionalidade, encerrado no artigo 29 do Código Penal, in verbis: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Assim, deve-se tentar perceber sempre a intenção do agente, pois este animus define por muitas vezes a correta aplicação da lei penal.

3.2 Teoria Bipartida

A teoria bipartida, encabeçada no Brasil pelo respeitabilíssimo doutrinador Damásio Evangelista de Jesus, disciplina que o crime vem a ser um fato típico e antijurídico, apenas. A culpabilidade seria entendida como pressuposto de pena. Muito se fala neste último tópico, “a culpabilidade como pressuposto de aplicação de pena”.
Isso deriva do fato de que a culpabilidade incidirá quando da aplicação da pena ao criminoso. Por exemplo: se um torcedor do time F mata um torcedor do time C, sem motivo aparente (somente pela diferença de torcidas), incorrerá no crime de homicídio. Homicídio é um fato típico (está previsto legalmente no artigo 121 do Código Penal), e antijurídico (ofende a lei, a norma jurídica e malfere outra pessoa, no caso o torcedor do time C). A culpabilidade, para os adeptos da teoria bipartida, neste caso incidiria quando a pena fosse ser imposta ao torcedor do time F: seriam analisados o seu contexto social e pessoal, o motivo do crime, a brutalidade com que ocorreu o fato etc.; dentro desse exame, a culpabilidade (a quantidade de reprovação social pelo crime cometido) seria plenamente percebida.
Os que defendem tal teoria afirmam que o sistema criminal brasileiro adotou-a, pelo fato de o Código Penal, ao abordar a culpabilidade, sempre se direciona no sentido de tratar da aplicação da pena, como se vislumbra no artigo 26, ipsis literis:

Art. 26 É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento.

Ou a segunda parte do artigo 21:

Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.

Assim sendo, a teoria bipartida entende que o crime é um fato típico e antijurídico. A culpabilidade é abordada, mas no sentido de estar presente quando a pena for aplicada ao agente delituoso.

3.3 Teoria Quadripartida

Por fim, há de se falar na teoria quadripartida do crime. Como a própria semântica do nome sugere, o crime seria composto de quatro elementos básicos: a tipicidade, a antijuridicidade, a culpabilidade (todas supra-abordadas), e, por fim, a punibilidade.
A punibilidade entendida como elemento do conceito de crime (grande característica dos adeptos desta teoria) seria a condição fundamental da responsabilidade jurídica e penal do agente criminoso. Assim sendo, para estes, além das três características fundamentais do crime, a punibilidade integraria o conceito, sendo requisito básico para a consolidação de um fato como criminoso. Todavia, a maioria devastadora da doutrina, desde meados da década de 1970, coloca a punibilidade como conseqüência prática do crime, ou seja, se o agente se desviar em conduta criminosa, incorrerá sobre si a responsabilidade penal prevista em lei.
É importante ressaltar que esta teoria vigorou no direito brasileiro, em especial no século XX, como mencionado acima até a década de 1970, e foi encabeçada no Brasil pelo memorável Nelson Hungria e por Basileu Garcia.

4. CONCLUSÃO

Buscando apresentar, com o mínimo de prolixidade e da forma mais acessível ao público em geral, o conceito de crime, entendeu-se que este é um fato que viola uma disposição legal.
Tal fato deriva-se de uma conduta humana, seja ela uma ação ou uma omissão, e possui alguns elementos básicos para sua caracterização. ESTE AUTOR ENTENDE SER A TEORIA TRIPARTIDA A QUE MELHOR SE ADEQUA AO CONCEITO DE CRIME, EM QUE PESE SER POSSÍVEL ANALISÁ-LO SOB O FULCRO DE QUALQUER DELAS.
Assim, o crime é um fato/conduta (ação ou omissão):
  • Típico: que está previsto em lei.
  • Antijurídico: que ofende os preceitos legislativos e a norma jurídica, sempre prejudicando ou malferindo os direitos de alguém.
  • Culpável: que é passível de um juízo de reprovação social.
Ressalta-se, por fim, a importância do estudo do crime e seus desdobramentos, para uma melhor compreensão e entendimento do tema, em especial àqueles bacharelandos em Direito ou aos que lidam diariamente e diretamente com o crime, seja nas mais diversas instâncias sociais de combate, prevenção ou repúdio ao mesmo.

5. BIBLIOGRAFIAS

CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito Geral e Brasil. 2ª edição - Revisada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Volume I. 12ª edição. Rio de Janeiro, Impetus: 2010.

____________. Entrevista com Rogério Greco. Acesso em 22 fev 2012. Disponível em <http://rogeriogreco.blogspot.com/2008/08/entrevista-com-rogerio-greco.html>

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 1º Volume - Parte Geral. 26ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.

1 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Volume I. 12ª edição. Rio de Janeiro, Impetus: 2010, página 46. 

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